Comunidades Terapêuticas e a Institucionalização de Pacientes Psiquiátricos
Historicamente, as Comunidades Terapêuticas constituíram-se enquanto um modelo de tratamento em saúde mental com abordagem baseada na redução de danos aos pacientes e familiares e práticas de cuidado com viés multidisciplinar, em contraposição direta às medidas restritivas de liberdade e de isolamento social decorrentes da internação em instituições hospitalares psiquiátricas.
Referido modelo de atenção, orientado por uma abordagem predominantemente psicossocial, teve seu surgimento determinado pelo objetivo de garantir a retomada da cidadania e autonomia das pessoas portadoras de doenças mentais e dependentes químicos, em consonância aos parâmetros instituídos pela Política Brasileira de Saúde Mental.
Certo é que a Lei n.º 13.840/2019, que altera a Lei n.º 11.343/2006, para tratar do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, admite apenas em caráter excepcional a internação em unidades de saúde e hospitais gerais, priorizando de maneira expressa as modalidades de atendimento em regime ambulatorial e reforçando o entendimento de que a internação deverá ser admitida tão somente para tratamento de casos graves e complexos.
Nessas situações, nas quais as demais modalidades de atendimento em saúde mental não forem suficientes, a Lei n.º 13.840/19 prevê a possibilidade de internação voluntária, com o consentimento do particular, e a involuntária, que se dá sem o consentimento do dependente, a pedido do familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de órgãos públicos autorizados na forma da lei, sendo imprescindível, nesta última hipótese, a justificativa técnica do profissional médico.
Evidencia-se, assim, que a habilitação de leitos para a especialidade de psiquiatria recebe tratamento especial pela legislação, sobretudo diante do Movimento de Desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos, objetivado Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que determina, dentre outras medidas, a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos Hospitais Psiquiátricos.
Nesse contexto, diante do enfraquecimento o e das restrições impostas a Hospitais Psiquiátricos para oferecimento de leitos de internação, algumas instituições, constituídas sob o formato de Comunidades Terapêuticas, com atuação voltada principalmente ao atendimento de pessoas portadoras de dependência química, assumem o espaço antes delegado às instituições hospitalares para oferecerem aos pacientes o tratamento em regime de internação, em quaisquer de suas modalidades: voluntárias, involuntárias ou compulsórias.
Ocorre que a oferta de internações psiquiátricas acima pretendida suscita inúmeros questionamentos, sobretudo em razão de as Comunidades Terapêuticas não atenderem aos requisitos legais e regulatórios exigidos para o funcionamento de um estabelecimento hospitalar, seja para a composição de um hospital geral com leitos de psiquiatria, seja para compor um hospital especializado.
A RDC Anvisa nº 29/2011, por exemplo, é clara ao dispor que a Comunidade Terapêutica deve garantir a permanência voluntária do residente e a possibilidade de interromper o tratamento a qualquer momento, tendo em vista que este se baseia essencialmente na convivência entre os pares, em regime de residência, o que pressupõe, assim, a aderência voluntária ao projeto terapêutico proposto.
Atenta-se, sobretudo, para o caráter sensível das internações involuntárias e/ou compulsórias, as quais, por prescindirem de consentimento do(a) paciente, demandam a observância de requisitos legais rigorosos para garantia de sua regularidade e devem, por conseguinte, serem ofertadas por instituições devidamente qualificadas e autorizadas, na forma da legislação em vigor, para a prestação do serviço.
Com efeito, a ampliação da possibilidade de internação voluntária e involuntária de pacientes através de Comunidades Terapêuticas torna-se uma ameaça grave às diretrizes legais aplicáveis ao tratamento em Psiquiatria, na medida em que são admitidas pela legislação enquanto medidas excepcionais, altamente vinculadas à justificativa técnica do profissional médico, na forma do art. 23-A, §5º, da Lei 11.343/2006, alterada pela Lei n.º 13.840/2019.
Assim, portanto, ao se portarem como estabelecimentos psiquiátricos com internalização de pacientes, as Comunidades Terapêuticas extrapolam os limites de atuação possíveis, dentro de sua especialidade, o que, para além de evidenciar a irregularidade de seu atendimento, oferece riscos significativos à confiabilidade das instituições efetivamente especializadas em saúde mental e comprometidas com as normas que direcionam e regulam o atendimento na área de psiquiatria.
Trata-se, outrossim, de um tema que merece atenção das autoridades competentes e fiscalizadoras, na medida em que revela um possível movimento de retorno à institucionalização em massa de pacientes portadores de dependência química, de forma diametralmente oposta aos pressupostos e limites impostos pela legislação que trata a respeito da saúde mental.
Referências Bibliográficas:
Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Resolução da Diretoria Colegiada – RDC n° 29, de 30 de junho de 2011, dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária para o funcionamento de instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 21 ago. 2006.
BRASIL. Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm. Acesso em: 18 dez. 2021
BRASIL. Lei nº 13.840, de 5 de junho de 2019. Brasília, DF: Presidência da República, 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13840.htm. Acesso em: 18 dez. 2021
Dra. Letícia Agostinho Mouro
OAB/MG nº 200.984