O Impacto Financeiro da Covid-19 nos Contratos Privados e a Teoria da Imprevisão: é possível requerer a revisão judicial das obrigações pactuadas?
Do ponto de vista econômico-social, o contrato tem por finalidade precípua a realização de interesses particulares de conteúdo patrimonial, através da determinação de obrigações e garantias para as partes pactuantes. Nesse sentido, suas disposições devem se manter estáveis ao longo da operação econômica, garantindo previsibilidade e segurança para os envolvidos.
Entretanto, em um cenário de grave crise econômica decorrente da disseminação da epidemia do Vírus Covid-19, questiona-se sobre a possibilidade de revisão judicial dos contratos privados em decorrência de eminente desequilíbrio contratual, tendo por principal fundamento a Teoria da Imprevisão.
Consoante previsão do art. 421, do Código Civil de 2002, os contratos do setor privado, para além de fixar obrigações entre os pactuantes, também possuem função social, razão pela qual o ordenamento jurídico coíbe o desequilíbrio contratual causado por acontecimentos imprevisíveis e/ou inevitáveis, que venham a gerar onerosidade excessiva a um dos contratantes.
Nesse sentido, a Teoria da Imprevisão, acolhida pelo artigo 317 do Código Civil de 2002, apresenta dois pressupostos para a sua aplicação: (i) imprevisibilidade e excepcionalidade do evento causador do desequilíbrio e (ii) extraordinariedade da álea causada a um dos contratantes.
Veja-se a redação do dispositivo:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.
Importa destacar que a imprevisibilidade aqui exigida não se refere às condições particulares dos contratantes, mas ao comportamento adequado, estando relacionada à ideia de probabilidade de dano. Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr. (2011, p. 900), “[…] a imprevisibilidade deve acompanhar a ideia da probabilidade: é provável o acontecimento futuro que ocorrerá, presentes as circunstâncias conhecidas, conforme o juízo derivado da experiência”.
Registre-se que a probabilidade de a crise causada pela epidemia do Covid-19 atuar de forma efetiva nos contratos privados é notória, tendo em vista o recrudescimento excessivo de várias atividades econômicas em todo o país, situação absolutamente imprevisível e evidentemente excepcional, com consequências nefastas para todo o setor econômico.
Não é demais ressaltar que, apesar da consagração do princípio da intervenção mínima nos contratos pela recente Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/19), referido diploma legal também prevê a possibilidade de revisão contratual em casos de excepcionalidade. Ao ensejo:
“Art. 421. […] Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual”.
Dessa forma, na atual conjuntura de crise econômica causada pelo Covid-19, mostra-se plenamente possível requerer judicialmente a revisão das obrigações pactuadas entre as partes, com base na Teoria da Imprevisão. Outro não pode ser o entendimento dos Tribunais, tendo em vista o amplo reconhecimento do papel institucional e social dos contratos privados, cuja revisão em caráter excepcional não só atende aos interesses de uma das partes contratantes, mas também a toda a coletividade.
Referências Bibliográficas:
AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Comentários ao Novo Código Civil: da extinção do contrato. Coord. Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 900. v. 6. t. 2.
BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm. Acesso em: 24 abr 2020.
BRASIL. Lei n. 13.874, 20 de setembro de 2019. Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/L13874.htm. Acesso em: 24 abr 2020.
MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, [20–]. p. 237. v. 5, t. 1.
Dra. Letícia Agostinho Mouro
OAB/MG nº 200.984